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 Manuel dos Santos, o Ti Duro, resguardava-se. Tinha comido muito milho debaixo de espantalho, empurrado pela necessidade. Em casa, desde pequenino, não havia onde desfechar o dente, e então era preciso ir saber dele onde o havia. Do cerejo ao castanho, bem ele se amanhava, com mesa posta, e farta, pelo termo todo; o pior era do castanho ao cerejo, as invernias prolongadas que passava a seco sem jeira, entocado no fojo que lhe servia de casa. Habituou-se a tudo. A fome ensinou-lhe uma lábia que não excluía a lamúria, quando era preciso. Largo, calmo, arrastando uns chinelos de felpa que tinham a idade dele, por causa dos calos, ajeitava-se a tudo, quando a questão era a boca. Só não gostava de trabalhos duros, - daí a alcunha - calhando-lhe mais os modos de aldeagante. Sacho, seitoura, gadanha, não era com ele, desculpava-se das juntas, que lhe haviam fraquejado do tombo dum macho.

- À Ti Duro, precisava de mais um p’ró rancho da azeitona…

- Pudesse ou, rapaze, mas ç que me çconjuntei do macho abaixo, nem sou home de apertar as alparcatas. Lá tocar a cria inda vá que não vá…

Nada. Ficava-se era ao quente no buraco da casa, a preparar as abuízes para armar aos tordos. Depois ia aos níçcaros, que esfrijolava numa sertã com unto que lhe davam nas matanças. Se calhava uns tordos, e às vezes uma perdiz, irem ao pouso, passava dois dias sem se mostrar, gemendo das cruzes se alguém o procurava. Na Primavera corria os poços e os ribeiros a colher agriões e meruges, as paredes a buscar azedas, a Ribeira, onde ainda adoçavam, a quitar laranjas de umbigo. Até que o cerdeiro velho do Professor arruçava as primeiras cerejas, que aí calçava os chinelos para todo o sempre.

Não trabalhava, então? Trabalhava! Já aqui se disse que dava para certos trabalhos, mais ao jeito dos calos e dos ossos fracos, e mais tarde da barriga, que se lhe avantajou de tal forma que o tolheu, então essa, de vez. Por exemplo: guardava vinhas. Por meados de Agosto – desde que pintava o bago – mudava-se para a casota das Cardosas, ali para o Calveiro, e, com uma foice e trinta e tal costelas governava a malvada. Perguntavam-lhe, quem passava por ali, então Ti Duro, como vai a vida? Gemendo e chorendo, respondia ele com muitos ais à mistura. Agarrado ao cajato da foice parecia um Lázaro a arrastar as chagas pelas encruzilhadas do termo. O outro sumia-se na curva do caminho e ele, pau ao ombro, a saltar a parede para fazer um pouso aos tralhões.

Mas o tempo foi-lhe resumindo as façanhas, confinando-o à cabana, e pouco mais. Passou a valer-se das manhas de pássaro matreiro. Pássaro? - rosnava o Zé Malato, concorrente que o conhecia de ginjeira – Passarão!

Via as manobras dos rapazes que, como ele, guardavam o vinhedo, deixava-os armar, às vezes via-lhes as ratoeiras, mas nem nelas tocava se tinham mantimento. Até os avisava, á rapazes tedes um chasco no lameira da Pêdra. E eles, obrigado ti Duro, depois logo apareça lá pela cabana. Era o que queria ouvir. Deixava-os depená-los, dava tempo até que cheirasse a fritura, e só depois aparecia, derrancado das cruzes. Sentado numa canastra almudeira, abria então calmamente a peleira, remexia com a ponta na sertã, escolhia o mais taludo e comentava muito admirado: - Este é um picanço! Por acaso é, respondia o Carlos, que era entendido. A seguir, com os mesmos meneios identificava uma folecra, um rouxinol, um chede ou um cartaxo. E assim iam minguando na sertã à medida que lhe compunham o estômago precisado. No fim, lambendo a beiça, comentava:

- Estavam valentes! Qual os fezo?

Os tempos compuseram-se e aí então deu como terminados os cadilhos desta vida. Todos os fins de mês o Aurélio Carteiro passou a trazer-lhe uma pensão que lhe chegava e sobrava para o mata-ratos e o copo do chincalhão. Á rapazes, dizia, estou velho para lavouras. Que as faça quem quijer. E não havia mal que lhe viesse. Do tempo dele havia um ou dois, tolheitos e metidos em casa. Ele, sempre a anunciar que qualquer dia vou-me, foi ficando e já nem lhe sabiam a idade.

- À Ti Duro, quantos anos tem? – berravam-lhe ao ouvido mouco.

- Já nem ou sei, rapazes, já nem ou sei…

Quando morreu foi tal a admiração que ninguém reparou na D. Prudência, a rica, que de longe teria assistido às exéquias fúnebres embrulhada no seu famoso xaile de merino, para não apanhar a frialdade do dia.

 

(Acresce dizer que D. Prudência era alguns anos mais velha (!!!)que o defunto. Sobre o ter ido ou não ao enterro, gerou-se viva controvérsia, ainda hoje não totalmente resolvida. O Bagulho afirmava e jurava, pela alma dos que lá tinha, que a vira no landó puxado pela égua maninha do Prudêncio; mas a sua palavra era um tanto ou quanto falha de crédito. Assentou-se definitivamente, e hoje é pacífico, que sim, que teria lá estado, até para justificar o acrescento ao sábio dito que dali nasceu).

 

 

 

 

publicado às 17:07



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